quarta-feira, 23 de maio de 2012



 O brincar na história da psicanálise


O brincar possui uma longa história na Psicanálise, tornando-se um caminho favorável para estabelecer a comunicação com as crianças. Através dos jogos e brincadeiras, a criança é capaz de expressar seus medos, desejos, ansiedades e entre outros, o que teria dificuldades de expressar com palavras.


Sigmund Freud

Sigmund Freud revolucionou o pensamento a respeito da criança em vigor na época, com suas teorias sobre a dinâmica do inconsciente, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo.
Freud (1908) no texto “Escritores criativos e devaneios” já discutia a relação entre as fantasias da criação poética e o brincar da criança.

Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?

Freud acreditou no uso a técnica psicanalítica com crianças ao publicar, em 1909, a análise de uma criança de cinco anos, conhecido como o caso do "Pequeno Hans” 
Ao pensar em brincar à luz da psicanálise, se faz necessário discorrer a respeito do jogo do Fort-Da.
Freud começou a se interessar pela questão do brincar a partir da observação de uma brincadeira do próprio neto, Ernstl, de 18 meses de idade, descrita em sua obra “Além do princípio do prazer”, de 1920.

O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera á puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia, era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino preferia seu expressivo’ ó-o-ó’,. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’. 

Nesse jogo de atirar e trazer de volta o carretel, repetidas vezes, tem relação com a partida e o retorno de sua mãe.
Desta forma, a compulsão a repetição vista no jogo, a criança busca transformar uma situação passiva em ativa, repetir situações satisfatórias e elaborar o que lhe foi sentido como traumático. O jogo possibilitou o bebê transformar uma situação na qual estava passivo para outra na qual passa a ser ativo. Assim a repetição desse jogo, produz um gozo para-além do princípio do prazer.  O principal axioma de Lacan  é: ”o Inconsciente é estruturado como linguagem”, portanto, somos estruturados a partir da fala e da linguagem. Para o psicanalista “as palavras fundadoras, que envolvem o sujeito, são tudo aquilo que o constituiu, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura da comunidade, que o constituiu não somente como símbolo, mas no seu ser” 
Jacques Lacan, no Seminário 11, faz referência ao jogo do fort-da e retoma a questão da repetição em Freud. Para Lacan, jogo do fort-da instaura a entrada da criança na linguagem pela utilização de um primeiro par significante. O ato de tornar presente o “ausente” marca a entrada do sujeito no simbólico.
Assim, a repetição significante é a simbolização de uma presença-ausência que articulada a palavra faz com que a relação mãe-bebe passe a ser mediada pela linguagem. Apesar da criança repetir inúmeras vezes a primeira ação, foi a segunda, considerada como fonte de prazer, que chamou a atenção de Freud. Mas para Lacan, o que está em jogo é a repetição da saída da mãe, gerando a cisão do sujeito. Segundo Lacan  o que o jogo visa é o que não está lá enquanto representado, pois o jogo é essencialmente o Repräsentanz da Vorstellung. Logo, o que precisa ser assimilado pelo sujeito é o que se repete, porém nunca da mesma maneira; "a repetição demanda o novo". Por isto, por mais desagradáveis que sejam as experiências vividas pelas crianças, elas irão aparecer como tema das suas brincadeiras.


Melanie Klein

Melanie Klein (1882-1960) foi o principal expoente da segunda geração psicanalítica mundial e contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento da escola inglesa de psicanálise. Foi uma das primeiras psicanalistas a trabalhar como crianças. Em 1924, no congresso de Würzburg apresentou o trabalho intitulado “A técnica da análise de crianças pequenas”. Recebendo o seguinte comentário de Karl Abraham: “O futuro da psicanálise é inseparável da análise pelo brincar”
M. Klein publicou sua primeira obra em 1932, A psicanálise com crianças, na qual discorria sobre as bases estruturais de sua teoria.
A psicanalise com crianças possui uma especificidade. Em psicanálise o método de tratamento é o mesmo para todos os pacientes, tendo como regra as associações livres. Porém o psiquismo da criança é diferente do adulto, e esta diferença se manifesta no brincar.
Na criança não existe uma associação verbal, pois ela não faz associação livre. Ela não o faz porque não sabe falar ou porque não seja capaz de traduzir seus pensamentos em palavras, mas porque sua angustia opõe uma resistência às associações verbais.
Pautada nesta observação Klein instaura a técnica do brincar (Play-Technique), para o tratamento psicanalítico com crianças. Para Klein a técnica do brincar não deve ser confundida com a ludoterapia (Play-Terapy). Para Klein a ludoterapia favorece ao paciente uma ab-reação, uma descarga emocional capaz de fazê-lo liberar um afeto desagradável, por estar ligado à lembrança de um acontecimento traumático que ele repetiria inconscientemente, portanto “o ludoterapeuta não está qualificado para interpretar o brincar da criança, pois não tem a menor ideia de como interpretar a transferência negativa”.
No tratamento analítico o brincar adquire o estatuto dos sonhos. Segundo Klein “no brincar as crianças representam simbolicamente fantasias, desejos e experiências”.
Mas para que o brincar alcance o estado de formação inconsciente favorecendo a escuta analítica, Klein pontua cinco parâmetros indispensáveis a serem observados:

1º - é preciso estar atento aos mais ínfimos detalhes durante as brincadeiras, para que haja uma interpretação efetiva, pois, certamente na sequencia do brincar, surgirão os encadeamentos;
2º - o material oferecido e escolhido pela criança também deve ser levado em conta: brinquedo, dramatização, água, recorte ou desenho;
3º - a maneira como brincam;
4ª - a razão por que as crianças passam de uma brincadeira a outra, e;
5º - os meios que escolhem para suas representações.

Quanto à interpretação, M. Klein só o fazia quando a criança exprimia o mesmo material psíquico em versões diferentes.
Em oposição a M. Klein, Hermine von Hug-Hellmuth entendia o brincar como uma satisfação das pulsões, pois “somente o brincar oferece à criança a possibilidade de chegar impunemente até o fim de suas pulsões”. Hermine também acreditava que a observação analítica da criança brincando, permitiria ao analista compreender seu comportamento. Mas apenas a observação analítica colocaria o analista numa posição se voyeurista. Assim, para psicanálise, também se faz necessário privilegiar uma escuta, num encadeamento subjetivo e transferencial.



Donald Woods Winnicott 

Donald Woods Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista britânico, foi um dos grandes teóricos sobre o brincar. Em 1958 publicou o livro “Da Pediatria à Psicanálise”, no qual apresentou o conjunto de suas posições sobre o tema.
Para Winnicott , a psicanálise é uma “forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros”.
Na busca por um conceito sobre o brincar, Winnicott compreendeu que as brincadeiras infantis não se encontram nem na realidade psíquica interna nem na realidade externa. Destarte, considera haver uma zona intermediária, na qual ocorrem os fenômenos transicionais.
Winnicott criou a expressão objeto transicional em 1951 para designar um objeto material (por exemplo, um brinquedo, ponta de uma coberta e etc.)que a criança chupa e aperta contra si, o qual ela elege, notadamente no momento de adormecer e que lhe permite efetuar a transição entre a primeira relação oral com a mãe e uma verdadeira relação de objeto.  Winnicott inclui no mesmo grupo certos gestos e diversas atividades bucais, a que chama de fenômenos transicionais. Estes comportamento são visto frequentemente em crianças entre os quatro e doze meses de idade. O objeto transicional mantem seu estatuto por um longo tempo até perder seu valor progressivamente e, poderá reaparecer mais tarde em momentos de uma depressão.
Também é possível não haver objeto transicional,à excessão a mãe, ou mesmo  a criança pode apresentar um grau de comprometimento emocional no seu  desenvolvimento a ponto de afetar a fruidez do seu  estado de transição, e ainda, a sequencia dos objetos de transição usados é rompida ou ainda, podem estar ocultas. O objeto transicional é simbólico a algum objeto parcial, como por exemplo o seio. Destarte, a importância não está no simbólico, mas na sua realidade. Segundo Winnicott, “o fato dele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe)”.
Portanto o objeto transicional e o fenômeno transicional  petencem ao domínio da fantasia, e  se extenderão ao longo de sua vida, fazendo-se presente nas  artes, religião e outros e, desde o início serão sempre importantes para o sujeito.


Françoise Dolto

Françoise Dolto (1908-1988), grande percussora da psicanálise freudiana. Junto como J. Lacan e outros fundou a Sociedade Francesa de Psicanálise em 1953. Para Dolto desde o nascimento, o bebê é um ser de fala. Seu método privilegiava a escuta capaz de traduzir a linguagem infantil, ou seja, o psicanalista deveria usar as mesmas palavras que a criança e comunicar-lhe os seus próprios pensamentos sob seu aspecto real.   
Dolto rejeitou as brincadeiras do seu método psicanalítico com crianças, usando a fala, o desenho e a modelagem.
 Durante as sessões, Dolto disponibilizava para a criança apenas papel, lápis, massa de modelar e sua fala. Estes serviriam como mediadores para a criança associar. Usava como consigna: “Você vai dizer em palavras, nos desenhos ou na modelagem tudo o que pensar ou sentir enquanto estiver aqui, mesmo as coisas que, com outras pessoas, você sabe ou acha que não convém dizer”. Ao término da atividade, Dolto pedia para a criança falar sobre seu desenho ou modelagem. Para Dolto, o resultado das produções das crianças era equivalente ao sonho e fantasias que surgiam na análise com adultos e, compreendidos como testemunhos da vivencia histórica e transferencial.
O método usado por F. Dolto enfatizava que para o psicanalista poder ouvir a criança, pensar como ela pensa, é preciso se colocar no lugar dela, sem sair da posição de analista.


 Considerações finais
             
Através da brincadeira a criança é capaz de aliviar as pressões internas. Na brincadeira simbólica a criança é capaz de liberar grande parte de sua agressividade.  Independente do método utilizado no trabalho psicanalítico faz- se necessária uma escuta atenta. Os brinquedos, e matérias disponibilizados a criança durante o trabalho psicanalítico serve como mediadores entre o inconsciente e o consciente. A leitura das produções da criança ocupa o lugar da associação do adulto. Portanto não cabe ao analista interpretar os desenhos de seus pequenos pacientes, mas sim os conteúdos do seu discurso. Também a maneira como a criança brinca e sua relação com o brinquedo muito terá a dizer. A especificidade da clinica psicanalítica com crianças impõe ao terapeuta que ele tenha seus sentidos aguçados, pois, qualquer palavra, frase, entonação e/ou gesto da criança poderá ser uma rica fonte de informação.
Portanto refletir o universo infantil à luz da psicanálise sugere um aprofundamento teórico.


 Referências

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FREUD, S. (1908). Escritores criativos e devaneios Vol. IX. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

____. (1920) Além do principio do prazer. Vol. XVIII. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

JERUSALINSKY, A. Psicanálise do autismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

 LACAN, J. O inconsciente e a repetição. In: Seminário, livro 11: os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS,J.B.. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LEDOUX, M.H. Introdução à obra de Françoise Dolto. In: Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. NASIO, J. D.(Org.) Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

THOMAS, M.C. Introdução à obra de Melanie Klein. In: Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. NASIO, J. D.(Org.) Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

____. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

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